Com a quantidade de “filmes de quadrinhos” que estreiam todos os anos nessa última década, fica difícil imaginar que antigamente a realidade era bem diferente.
Em 1989, filmes de quadrinhos eram a exceção, não a regra. Era consenso que esses filmes, além de não prestarem artisticamente, não davam dinheiro. Até a exceção, que era a série Superman, iniciada por Richard Donner em 1978, acabaria afundando quando caiu nas mãos de outros cineastas, culminando com o risível Superman IV – Em Busca da Paz, em 1987.
Batman mudou tudo, mostrando o que um filme de quadrinhos podia ser. A revista Variety publicou um artigo chamado “Nove maneiras como o Batman de Tim Burton mudou os filmes de super-herói para sempre” ao celebrar os 25 anos do clássico, e achei que seria interessante revisitá-lo aqui!
Boa leitura!
Armaduras X Calças Justas
Olhando o visual de Batman no filme de Tim Burton podemos concluir que os produtores finalmente reconheceram que os uniformes colantes e coloridos dos quadrinhos não poderiam ser utilizados no cinema. A armadura de Batman no filme de 1989 passou a ser o padrão: segundo a Variety, basta olhar para o visual recente de outros heróis no cinema, como o o traje de couro de Wolverine em X-Men ou a armadura de Superman em O Homem de Aço (Man of Steel, 2013).
Um universo à parte
O visual gótico-noir-steampunk de Gotham City no primeiro Batman rendeu a Anton Furst um Oscar de Melhor Direção de Arte. Enquanto os filmes anteriores do Superman se passavam em um mundo realístico, Burton e Furst criaram um novo universo, comprovando que adaptações de HQs podem sim apresentar uma realidade à parte, distante das amarras do “mundo real” já conhecido pelos espectadores. Burton acreditava que personagens fantásticos como Batman e o Coringa precisavam estar em um mundo onde se encaixassem perfeitamente. O impacto desta nova maneira de se pensar a concepção visual dos filmes pode ser sentido em filmes como Dick Tracy, Blade, Hellboy e Watchmen.
Curiosamente, Furst acabaria cometendo suicídio alguns anos depois. Burton, muito amigo do diretor de arte, por muito anos não era nem capaz de tocar no assunto.
Why So Serious?
Até o lançamento do Batman de Tim Burton em 1989, a imagem de Batman que persistia no imaginário popular era aquele festivo e cômico interpretado por Adam West na década de 1960, na série de TV, com muitos “Pows”, “Zaps” e “Wans” saltando pela tela! Um dos desafios do filme de Burton era se distanciar desta lembrança. Para isso, Burton (que confessa adorar a série de TV) criou uma versão mais séria, sombria e perturbada do Cavaleiro das Trevas. Há diversos momentos cômicos no filme — com o Coringa em cena não podia ser diferente – mas a produção está longe de ser voltada para o criançada. Como diz a Variety, esta versão sombria do herói se mostrou tão popular que até hoje ecoa em filmes como O Justiceiro: Em Zona de Guerra (Punisher: War Zone, 2008), Motoqueiro Fantasma: Espírito de Vingança (Ghost Rider: Spirit of Vengeance, 2011) e, claro, a própria trilogia de Christopher Nolan do Cavaleiro das Trevas.
A teoria do autor
Até o lançamento de Batman, Tim Burton tinha no currículo apenas duas produções de sucesso-surpresa nas bilheterias — Os Fantasmas se Divertem (Beetlejuice, 1988) e As Grandes Aventuras de Pee-wee (Pee-wee’s Big Adventure, 1985). Foi a adaptação do Cavaleiro das Trevas que o conduziu ao estrelato como o diretor visionário, com um estilo visual fácil de ser reconhecido, que conhecemos hoje. Seria muito fácil Burton ter dirigido um filme sob encomenda, convencional e esquecível. Porém, foi sua visão peculiar do universo de Gotham City e de seu herói que chamaram tanta atenção e provaram que adaptações de quadrinhos também podem ser “filmes de autores”, abrindo espaço para diretores como Guillermo del Toro, Zack Snyder, Christopher Nolan e Sam Raimi.
Burton teria mais liberdade no próximo filme do herói, onde teve controle criativo total, Batman – O Retorno.
O rosto por trás da máscara
Na época, ninguém entendeu muito bem o que Burton e o produtor Jon Peters queriam escalando Michael Keaton para o icônico papel de Batman/Bruce Wayne, um ator que até então era mais conhecido por filmes de comédia. O anúncio da escalação de Keaton causou uma queda no valor das ações da Warner, o estúdio recebeu 50.000 cartas de protesto e o Wall Street Journal cobriu a crise em sua primeira página!
O sucesso de público e crítica do filme comprovou que os ambos estavam corretos e que um super-herói não necessariamente precisaria ser interpretado por um galã ou sujeito musculoso. Para a Variety, foi essa decisão arriscada que abriu as portas para a escalação pouco convencional de outros atores para filmes do gênero anos depois, como Tobey Maguire, Robert Downey Jr. e Mark Ruffalo.
Hoje, nos EUA, Keaton é tido como o melhor Batman.
Aquele que você ama odiar
Já virou chavão falar que “atrás de todo grande herói há um grande vilão”. O ditado foi seguido à risca no filme de Tim Burton, que trouxe ninguém menos do que o multi-ganhador do Oscar Jack Nicholson para interpretar o arqui-inimigo do Cavaleiro das Trevas. Nicholson brindou o filme com uma atuação memorável que, em vários momentos, ofuscou o protagonista (o que se repetiria com o Coringa de Heath Ledger).
Burton explicou que isso se dá ao fato dos personagens serem o que são: segundo o diretor, se soltássemos Batman e o Coringa no meio de uma rua, Batman correria para se esconder no primeiro beco escuro, enquanto que o Coringa sairia em desfile pelo meio da rua, como quem diz, “Olhem pra mim, olhem pra mim!”.
Nicholson trocou seu cachê por uma porcentagem do lucro do filme, e ganhou mais de US$50 milhões por ele. Além disso, o personagem do Coringa ficou contratualmente ligado ao ator perpetuamente. Nicholson também foi pago quando Heath Ledger e Jared Leto interpretaram o papel.
Graças a esse sucesso, vários outros grandes atores foram chamados para interpretar vilões em adaptações de quadrinhos, como Al Pacino, Jeff Bridges, Ian McKellen e Willem Dafoe.
O finado Robin Williams quase ficou com o papel de Coringa, que Jack Nicholson só acabou aceitando depois que Tim Burton aceitou visitar o ator em sua fazenda e andou a cavalo com ele, segundo o produtor Peter Guber.
Uma marca para ficar
Hoje, em filmes de super-heróis, é comum que o título do filme venha acompanhado de um emblema à altura, que fale por si só e seja identificado com facilidade pelo espectador. A Variety reforça que essa é mais uma herança do Batman de 1989, que apresentou o símbolo do morcego, em preto e dourado — havia, inclusive, cartazes que traziam apenas o logo, sem o nome do filme, seguindo o exemplo de alguns cartazes do Superman de Richard Donner. A teia do Homem-Aranha, o escudo do Capitão América e o 4 metalizado do Quarteto Fantástico são exemplos similares da importância de uma marca visual impactante, reforça a revista.
Bat-merchandising
A Warner Bros. não foi boba. Junto do filme nos cinemas, lançou uma série enorme de brinquedos, produtos e roupas que se inspiravam no Batman de Tim Burton, o que contribuiu para aumentar ainda mais o hype em torno da obra. A estratégia não era nova – vide Star Wars -, mas foi a primeira vez que era utilizada para vender (literalmente) uma adaptação de histórias em quadrinhos. Em 1989 era literalmente impossível dar dois passos na rua sem ver alguma coisa relacionada ao filme!
Hoje, os filmes de super-heróis são acompanhados por todo tipo de produtos voltados não só aos fãs, mas aos consumidores que conhecem de longe os personagens — desde os óbvios bonecos até cosméticos e edições limitadas de salgadinhos. Estima-se que Batman tenha gerado mais de um bilhão de dólares em merchandising (isso em valores da época). Jack Nicholson comentou que a Warner estava totalmente despreparada para esse sucesso, e que se soubesse que ele ia acontecer, poderia ter se preparado melhor e lucrado duas vezes isso!
Se o bat-cereal era ridículo, ao menos o jogo para NES era sensacional!
Respeite o cânone
Aqui, a Variety se equivoca um pouco em seus argumentos. A revista defende que, antes da chegada do filme de Burton, as adaptações de histórias em quadrinhos se baseavam apenas vagamente no material original, deixando muita coisa de fora e acrescentando tantas outras, para desespero dos fãs mais xiitas.
Para a Variety, Burton reescreveu essas regras ao olhar diretamente para as páginas dos quadrinhos ao adaptar as HQs, trazendo de lá sequências e cenas que os espectadores já haviam visto no papel. Duas das fontes usadas pelo diretor no filme de 1989 foram as clássicas histórias A Piada Mortal, de Alan Moore, e O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller.
Mas é preciso lembrar que o roteiro do filme de 1989 também escorregou em algumas polêmicas. No filme de Burton foi o próprio Coringa, antes da sua transformação no vilão, que matou os pais de Bruce Wayne. Batman revela sua identidade para a repórter Vicky Vale com uma facilidade nunca vista antes nas HQS. O roteirista Sam Hamm afirma que esses dois acontecimentos não constavam em seu roteiro, e Burton assumiu a responsabilidade por eles, admitindo depois que foi um erro.
E, no fim, o Coringa morre (de verdade), o que desagradou muitas pessoas. Direta, ou indiretamente, os filmes de quadrinhos de hoje em dia parecem muito mais preocupados em serem tão fiéis quanto possível ao material de origem.